Tributação sobre heranças e doações e PLP 108/24: Fisco poderá definir o valor da sua empresa?
- UNICON
- 19 de ago.
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Com a sanção presidencial do PLP nº 68/2024 na metade de janeiro, todos os holofotes das discussões acerca da reforma tributária passaram a recair sobre esse diploma legal, que regulamenta a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e o Imposto Seletivo (IS).
Igualmente importante, contudo, é o PLP nº 108/2024, aprovado pela Câmara de Deputados no final do ano e atualmente na pauta do Senado.
Esse projeto de lei complementar possui disposições de especial relevância para os planejamentos patrimoniais e sucessórios país a fora, visto que objetiva criar nova regra para o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou Direitos.
O ITCMD é o imposto que tributa as doações e heranças no Brasil. Atualmente, o imposto é regulamentado pela legislação de cada estado, que possuía certa discricionariedade para definir questões como alíquotas e bases de cálculo, desde que respeitados os tetos federais.
Caso aprovado no Senado, o PLP poderá ensejar a unificação de algumas questões tributárias no que tange ao ITCMD. Dentre elas, e de especial relevância para o presente artigo, é a normativa sobre a base de cálculo do imposto de quotas ou ações de pessoas jurídicas de capital fechado.
É prática corriqueira no ambiente empresarial brasileiro a consolidação do patrimônio, mobiliário e imobiliário, em estruturas denominadas holdings patrimoniais. Por meio dessas estruturas, todo o patrimônio da entidade familiar é concentrado em uma pessoa jurídica, de modo que as velhas gerações transmitem às novas não o patrimônio de forma direta, mas sim as cotas ou ações desse tipo de empresa.
Para valorar essas cotas e ações, até então, os fiscos estaduais utilizavam de diferentes métodos. A jurisprudência do estado de São Paulo, por exemplo, permite que o contribuinte recolha o ITCMD com base no patrimônio contábil da sociedade, constante em balanço patrimonial.
Santa Catarina, por sua vez, permite que o imposto seja calculado sobre o valor patrimonial líquido contante em balanço, desde que atualizado à data de abertura da sucessão.
Ambas as hipóteses, naturalmente, refletiam um valor descontado em relação ao real valor de negociação desses títulos.
Agora, com a reforma tributária, a situação poderá mudar de figura caso aprovado o PLP. O artigo 175, II do PLP nº 108/2024 estabelece a seguinte regra para valorar as quotas e ações de sociedades de capital fechado, para fins de ITCMD:
“Art. 175. No caso de quotas ou ações de emissão de pessoas jurídicas ou no caso de empresário individual, a base de cálculo do ITCMD será determinada de acordo com as seguintes regras: II – nos demais casos, a base de cálculo deverá ser calculada com metodologia tecnicamente idônea e adequada às quotas ou ações, inclusive o método técnico que contemple eventual perspectiva de geração de caixa do empreendimento, e deverá o valor corresponder, no mínimo, ao patrimônio líquido ajustado pela avaliação de ativos e passivos a valor de mercado, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio, conforme estabelecido na legislação do ente tributante.”
Não se está agora lidando simplesmente com o valor nominal ou de mercado das quotas e ações. Pelo contrário. A reforma tributária está concedendo aos Fiscos estaduais um verdadeiro poder de realizar um valuation aprofundado das empresas, utilizando-se de técnicas de valoração bastante complexas, que podem abranger questões como perspectiva de geração de caixa e apreciação do fundo de comércio.
O fundo de comércio corresponde ao conjunto de bens imateriais que agregam valor a uma empresa, tais como clientela, reputação, localização privilegiada, marcas e patentes. Trata-se de um elemento altamente subjetivo e variável, cuja mensuração envolve considerável grau de incerteza. Ao incluir o valor de mercado do fundo de comércio como critério obrigatório na base de cálculo do ITCMD, o PLP nº 108/2024 amplia ainda mais a margem de subjetividade na valoração das cotas e ações, abrindo espaço para disputas entre contribuintes e a Fazenda Pública.
Possíveis divergências na base de cálculo
Outro ponto sensível é a ausência de um método padronizado para o valuation, que pode levar a divergências significativas na base de cálculo do ITCMD. Isso porque diferentes métodos de valuation podem gerar resultados distintos para uma mesma empresa, mesmo quando analisada no mesmo contexto fático, o que evidencia o alto grau de subjetividade que pode ser introduzido na determinação da base de cálculo do imposto.
O Fluxo de Caixa Descontado (FCD), por exemplo, projeta os lucros futuros da empresa e os traz a valor presente utilizando uma taxa de desconto baseada no risco do negócio. Esse método, apesar de amplamente utilizado no mercado financeiro, é altamente sensível a variações na projeção de receitas e nos parâmetros de risco, podendo resultar em valorações significativamente divergentes a depender das premissas adotadas.
Já o Valor Patrimonial Líquido (VPL) foca exclusivamente nos ativos e passivos registrados no balanço contábil, desconsiderando a capacidade da empresa de gerar receitas futuras. Isso pode levar a avaliações consideravelmente inferiores ao valor de mercado da empresa, especialmente em negócios que detêm ativos intangíveis de grande valor.
O método dos múltiplos de mercado, por sua vez, compara a empresa com outras do mesmo setor, utilizando indicadores como Ebitda ou faturamento. Apesar de fornecer um parâmetro de valoração baseado em referências externas, esse método é altamente dependente da amostra de comparação e das condições macroeconômicas vigentes, o que pode gerar resultados díspares mesmo para empresas com características similares.
A escolha do método pelo Fisco pode, portanto, impactar diretamente a carga tributária incidente sobre a sucessão patrimonial. Dependendo do critério adotado, uma mesma empresa pode ser avaliada em valores substancialmente distintos.
O que o PLP nº 108/2024 propõe, na prática, é criar para o Fisco uma ferramenta semelhante à já conhecida apuração de haveres no âmbito do Poder Judiciário. Os processos de apuração de haveres decorrem de disputas entre sócios ou acionistas, geralmente em razão da retirada de um deles do quadro societário, por exclusão, retirada voluntária ou falecimento.
Nesses casos, torna-se necessária a definição do valor real da participação do sócio retirante para que ele ou seus sucessores recebam a devida compensação financeira.
A complexidade desses processos reside na determinação do valor justo da empresa, que pode variar substancialmente conforme o método de valuation adotado, as premissas consideradas e a subjetividade inerente à avaliação de ativos intangíveis.

Ao permitir que os fiscos estaduais adotem métodos complexos e subjetivos para definir o valor das quotas e ações de empresas, o PLP nº 108/2024 cria um cenário propício para disputas infindáveis entre contribuintes e a administração tributária. Empresas e herdeiros poderão se ver em situações nas quais precisarão contestar avaliações arbitrárias ou inflacionadas, tal como ocorre em litígios judiciais sobre apuração de haveres.
Ou seja, o caminho trilhado pelo legislador é o de uma tributação que carrega consigo a promessa de litígio prolongado. Se no ambiente societário a apuração de haveres já é um problema crônico no Judiciário, o mesmo poderá ocorrer na esfera tributária, tornando o planejamento sucessório ainda mais desafiador e imprevisível.
Além disso, as mudanças propostas pelo PLP nº 108/2024 impactam diretamente as empresas familiares, que representam uma parcela significativa da economia brasileira. Segundo estudo da PwC, 75% das empresas familiares no Brasil não sobrevivem à segunda geração, em parte devido às dificuldades de sucessão e à carga tributária incidente sobre transmissões patrimoniais.
Com a possibilidade de valuation inflacionado, os herdeiros podem enfrentar dificuldades para pagar o ITCMD, especialmente se os ativos herdados forem ilíquidos. Isso pode forçar a venda de participações societárias, prejudicando a continuidade dos empreendimentos familiares e desestimulando a sucessão empresarial.
Ademais, a incerteza sobre os critérios de valoração pode aumentar a litigiosidade entre contribuintes e a Administração Tributária. Isso representa um entrave adicional ao ambiente de negócios, podendo desestimular investimentos e afetar a competitividade das empresas nacionais.
Ameaça à previsibilidade
O PLP nº 108/2024 representa uma ameaça real à previsibilidade e à segurança jurídica no campo tributário, uma vez que possibilita avaliações subjetivas e métodos variáveis na valoração de quotas e ações, permitindo que o Fisco defina critérios distintos para casos semelhantes. Tal falta de uniformidade afronta diretamente o princípio da capacidade contributiva, pois a definição arbitrária da base de cálculo pode impor encargos fiscais desproporcionais à realidade econômica do contribuinte.
Ademais, a tributação excessiva e a insegurança jurídica resultantes dessa proposta colocam em risco valores fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, como a livre iniciativa e a estabilidade das empresas familiares. O princípio da preservação da empresa, embora tradicionalmente aplicado no direito empresarial e falimentar, guarda relação direta com o contexto aqui tratado, pois a continuidade das atividades empresariais pode ser comprometida pelo impacto financeiro da imposição fiscal elevada, inviabilizando a perpetuação dos negócios e sua função social.
Portanto, espera-se que o Senado promova ajustes substanciais no texto do PLP nº 108/2024, estabelecendo critérios objetivos para a valoração de ativos. Caso contrário, a nova sistemática poderá não apenas aumentar os litígios tributários, mas também comprometer a viabilidade econômica das empresas familiares, resultando em consequências negativas para o ambiente de negócios e para a economia como um todo.
Fonte:
Consultor Jurídico - CONJUR (https://www.conjur.com.br/2025-ago-14/tributacao-sobre-herancas-e-doacoes-e-plp-108-24-fisco-podera-definir-o-valor-da-sua-empresa/)
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